sábado, 26 de janeiro de 2008

André Ferrer

A promoção


Leonildo pegou a mulher de jeito. Era servidor municipal e o escrivão de polícia repetiu a pergunta ao delegado. Imprescindível substituir o carbono.

Passava o dia e a vassoura no asfalto, sim, lotado no serviço de limpeza pública, sim, mas recentemente era visto nas proximidades da estação.


— Promovido! Fui promovido doutor! — acudiu Leonildo com a voz de cachaça. — Estou na limpeza da praça da estação agora no lugar de varrer as ruas da cidade! Fui promovido semana passada! O doutor pode “veriguar”!


— É trabalhador! — disse alguém alarmado. — Aqui todo mundo conhece o Nildão! Só exagerou um pouco, seu delegado, na hora de comemorar!

Era de praxe aparecer boas almas; um ou dois corações derretidos cuja intercessão arrancava protestos de testemunhas menos condescendentes: — Valha-me Deus! Se bater é comemorar?!

— Valha-me Deus digo eu! Contenha-se, ó, cambada! — o delegado ralhou. — Põe aí, ó, meu filho... Meu filho, já trocou essa geringonça?!

— Pronto! — o escrivão respondeu.

Apesar da zonzura, Leonildo conseguia pensar na besteira que tinha feito. Logo agora?! disse ele consigo mesmo. Gostava tanto de trabalhar na praça, muito ao abrigo das intempéries... Uma desgraceira se perdesse aquilo tudo! Coisas como o tanque de peixes, bem no meio da Marechal, que contornava um par de vezes no início do dia maravilhado, pisando fragores de folhas secas, o preparativo da varredura.

Como tinha prazer! Voltava para o porão, espécie de despensa construída sob o coreto, e se aparelhava. Ia trabalhar debaixo das bungavílias, empunhando a piaçava pelo cabo que, instantaneamente, era o quadrilzinho de uma valsa chiadeira. Sob a Sete Léguas, mil estalos de polvilho azedo.

Ganhava o mesmo, era certo, mas compensava por não ter que “turricar” debaixo do Sol! Ordinário parar e abandonar o peso do corpo no vassourão. Olhos encantados por uma carpa japonesa.

Então está certo! Vamos continuar com o agressor, Leonildo Siqueira — disse o delegado. — Antes do incidente, onde é que o senhor estava?

Naquela tarde, logo depois do trabalho, fora beber com José, varredor de três quarteirões lá pelas bandas da algodoeira; um camarada, decerto, que não via um tempão atrás.

Desde a promoção, completava-se uma semana — dois felizes, enveredados numa carraspana mútua, beberam tudo de um assunto só. Boa sorte — muita boa sorte, dizia o rótulo.

A sorte, enfim, levou o papo à beligerância; que a “premiada” era merecida; que o outro também merecia e logo teria igual; que o primeiro, sim, tinha muita boa sorte, mas que abrisse os olhos com a patroa!

— Cê tem prova?!

— Como não?!

Cachaça e inveja dão nisso mesmo!

— Derrubou a mulher lá fora, no quintal cheio de pedregulhos, e mandou ver! Mandou ver até a coitada fugir para dentro de casa! Mas que cena triste de assistir! Uma selvageria doutor delegado!

Foi o defensor de antes, traidor, “afrouxado”, maria-vai-com-as-outras, completamente vencido pelas pressões.

Na escrivaninha, o catador de milho enroscou as falanges no “qwerty” e reclamou na forma de um longo gemido.

— Põe aí, ó, meu filho! — fez o delegado. — E não vai dizer que o papel acabou de novo heim!

— Não senhor! Aqui tem papel o bastante!

Segundo as testemunhas, Nildão continuou batendo na sala e, depois, na cozinha, onde a mulher repetiu a queda. Bateu e bateu até pisar nos dedinhos dela e parar repentinamente. Debaixo da sola, cinco folhas desidratadas.


Um comentário:

Paulo disse...

Muito interessante!!!
Abraço
Paulo
PORTUGAL